Por que reforma que privatiza coleta de esgoto no Brasil virou alvo de ataques



Medida provisória em vigor proíbe dispensa de licitações para obras feitas por companhias estaduais de água e esgoto, como é hoje. Sindicatos e oposição não economizam nas críticas

 

Mais uma reforma está sendo preparada pelo governo de Michel Temer em um tema sensível: o saneamento básico. A Medida Provisória (MP) 844, enviada no começo de julho ao Congresso, dificilmente será aprovada ainda neste governo, mas levanta o debate sobre quem deve ser o responsável por essa área fundamental e sobre qual o tamanho do Estado que o Brasil precisa. A forma de gestão atual do setor tem falhas e ainda há mais de 100 milhões de brasileiros sem acesso ao serviço de coleta e tratamento de esgoto.

 

A principal polêmica levantada com a MP 844, que foi alvo de críticas de alas da esquerda e do funcionalismo público, é o fim do monopólio estadual para as obras de saneamento ao terminar com a dispensa de licitação para essas empresas.

 

A nova lei também fortalece a Agência Nacional de Águas (ANA), que ficará responsável pela regulação do setor, além de manter seu papel atual, de gerir o uso dos recursos hídricos. A partir da reforma do saneamento, a ANA passa a ser responsável pela instituição de normas de referência nacional para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico. A MP prevê ainda a criação de 26 cargos comissionados e a autorização para nomeações de concursados no quadro da agência.

 

Segundo levantamento do Instituto Trata Brasil, 51,92% da população brasileira têm acesso à coleta de esgoto e somente 44,92% dos esgotos são tratados. Quatro milhões de brasileiros não têm acesso a um banheiro. Mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso a serviço de abastecimento de água tratada. São necessários investimentos de R$ 303 bilhões para universalizar o acesso à água e esgoto no país.

Questionamentos sobre o papel do Estado e sua ineficiência

 

Tais dados demonstram a incapacidade do modelo atual em responder a um tema tão importante da saúde pública. Antes da MP, competia às agências municipais e estaduais do setor planejar e executar a política de saneamento, usando recursos públicos, o que criava uma grande pulverização nas regras e formas de atuação.

 

Um estudo realizado pela Consultoria Legislativa do Senado antes da publicação da MP traça um panorama desses problemas. “No que se refere à prestação dos serviços de saneamento, observa-se um quadro de absoluta diversidade e ausência de padronização”, afirmam os pesquisadores, que citam que há hoje no setor um total de 1.641 prestadores de serviços, sendo 28 de abrangência regional (as companhias estaduais de saneamento, que atendem a vários município); seis de abrangência microrregional (atendem a dois ou mais municípios no mesmo estado) e 1.607 prestadores de abrangência local que atendem a um único município.

 

E mesmo assim, há municípios que não são atendidos por qualquer entidade. As companhias estaduais de saneamento são responsáveis pelo atendimento de 78,1% dos municípios pesquisados em 2016 para abastecimento de água e 54,1% para esgotamento sanitário.

 

“O contexto histórico do país com o saneamento básico se caracteriza pelo descaso, ora se atribuindo a prestação do serviço a entidades estaduais nas quais ficam evidenciados interesses desvinculados da própria prestação do serviço, ora se atribuindo a prestação do serviço a municípios sem os devidos aportes financeiros e auxílios técnicos, fato que tornou necessária e urgente uma política pública federal compartilhada com estados e municípios, que seja eficiente, eficaz e efetiva e, igualmente de recursos para investimentos elevados nesse setor”, afirmam os pesquisadores do Senado.

 

O outro ponto alvo da maioria das críticas contra a MP é a de que ela permite ou facilita a privatização dos serviços de saneamento. Nos estados, o cenário fiscal de crise e com grande endividamento colocou a possibilidade de venda de empresas como as companhias de água e esgoto do Rio de Janeiro, a Cedae, e de São Paulo, a Sabesp, entre as medidas que podem ajudar a quitar parte das dívidas estaduais. Segundo o governo, mesmo que tais empresas sejam privatizadas, os contratos de programas que destinam recursos públicos a esses entes serão mantidos.

Disponibilidade hídrica

 

A dispensa de licitação para realização de obras é um dos pontos mais combatidos pela oposição e alas da esquerda. A bancada do PT na Câmara repudiou a publicação da medida provisória, avaliando que “a MP privatiza a água nos grandes centros urbanos e inviabiliza a prestação de serviços públicos nas pequenas cidades, inclusive nas regiões de baixa disponibilidade hídrica”.

 

Eles assinam a nota afirmando serem aliados de entidades de classe do setor, como Associação Nacional de Empresas Estaduais de Saneamento (AESB), Associação Nacional de Prestadores Municipais de Serviço de Saneamento (ASSEMAE), Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) e a Frente Nacional do Saneamento (FNS).

 

Para os deputados do PT, o sistema de dispensa de licitação para obras permite que projetos em áreas mais ricas dos municípios, e onde há interesse econômico em realizar as obras, subsidiem os projetos nas áreas pobres. “Com o fim do subsídio cruzado, a MP imporá tarifas tão altas que tornará proibitivo o consumo de água tratada nos municípios com sistema superavitário explorados por empresas privadas, que só almejarão lucros, e também nos municípios deficitários, onde as tarifas serão proibitivas em razão do fim do subsídio cruzado”, afirmou a bancada, em nota.

 

Do lado do governo, a explicação é que a MP contém regras para garantir que as áreas pobres não ficarão desatendidas. Com licitação, o governo federal argumenta que será possível reduzir os preços e melhorar a qualidade dos serviços e ampliá-los.

 

“Espera-se assim uma elevação na qualidade das normas regulatórias para o setor de saneamento básico e uma maior uniformização regulatória em todo território nacional”, afirma a nota técnica da MP. “Por fim, a MP inclui no escopo das ações públicas de saneamento a ampliação dos serviços nos assentamentos urbanos irregulares e consolidados ocupados por população de baixa renda. Estas são áreas em que a reversão da ocupação apresenta grande dificuldade e, devido as características socioeconômicas da população e da ocupação do solo, os serviços de saneamento apresentarão maiores retornos sociais e econômicos”, avalia o governo federal.

 

De acordo com técnicos do Senado que assinam a nota técnica da MP, feita para embasar a decisão dos parlamentares sobre o tema e publicada cinco dias após envio do texto, a nova lei não alterará regras dos contratos assinados anteriormente à vigência das normas estabelecidas pela ANA. Além disso, as ações de saneamento básico em áreas rurais, comunidades tradicionais e áreas indígenas não serão afetadas pela reforma, bem como soluções individuais que não constituem serviço público em áreas rurais ou urbanas.

Exemplo do setor elétrico

 

O debate e a preocupação com o papel do Estado em prover serviços essenciais não é exclusivo da área do saneamento básico. O novo modelo pretendido pela MP 844 aproxima as regras desse setor ao de energia elétrica, que tem a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) como responsável pela fiscalização e cumprimento dos compromissos das empresas do setor com os clientes, atendendo o que o governo federal exige delas como concessionárias de um serviço público.

 

No caso do setor elétrico, há indicadores de qualidade e atendimento que devem ser cumpridos pelas empresas, bem como compromissos de atendimento a regiões carentes e concessão de subsídios. Esse é o caso do programa Luz para Todos (custeado parcialmente por recursos públicos do Orçamento Federal e parte pelas distribuidoras de energia) e da Tarifa Social (no qual recursos da conta de luz dos consumidores garantem o desconto ou gratuidade para residências de baixa renda).

 

A Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) defendeu a proposta do governo, afirmando que a proposta confere maior segurança jurídica aos investidores públicos e privados e maior uniformidade nos procedimentos.

 

“A forte reação das companhias estatais a essa nova possibilidade se baseia no argumento de que a forma vigente permite à estatal aplicar a política de subsídio cruzado – aplicando receitas superavitárias em municípios deficitários. A questão deve ser bem debatida, levando-se em consideração seus diversos ângulos. Principalmente através da análise realista de que o subsídio cruzado não tem se mostrado eficiente”, afirmou a entidade, em nota.

 

Dentro da ANA, a quem competirá assumir um papel maior do que atualmente ocupa, a publicação da MP foi recebida com certa surpresa. O governo teria deixado o texto engavetado há mais tempo do que o esperado e alguns técnicos já não acreditavam mais que a reforma sairia neste ano. Questionada oficialmente pela Gazeta do Povo, a agência não comentar sua posição neste momento.

 

“A Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Águas, com apoio de seu corpo técnico, está avaliando as alterações propostas pela Medida Provisória 844 e vai se pronunciar oportunamente”, respondeu a ANA.

Fonte: gazeta do povo

31-07-2018