Reciclagem de água cresce no combate à crise hídrica



Segundo especialistas, a medida pode abastecer setores diversos, dos tanques das indústrias às torneiras das casasParecia um recurso inesgotável. Mas, com os humanos utilizando anualmente 4,6 mil quilômetros cúbicos de água, por volta de 2050, mais de 5 bilhões de pessoas — metade da população global estimada para daqui a três décadas — serão afetadas com a crise hídrica. Diante desse cenário apresentado pelas Nações Unidas no Fórum Mundial da Água, evento que se encerrou sexta-feira em Brasília, ganha força uma alternativa defendida há tempos por cientistas: a reciclagem ou o reúso para abastecimento em diversos setores, da indústria ao consumo humano.

 

Para quem sempre esteve acostumado a ter água limpa ao alcance da mão, a ideia de reaproveitá-la pode não soar agradável. Porém, para 844 milhões de pessoas que, hoje, vivem sem acesso a esse recurso essencial, iniciativas de reúso já são bem-vindas. Em Cingapura, por exemplo, ninguém parece ter achado ruim quando, no fim da década de 1990, o governo anunciou os planos de reciclagem, inclusive para consumo humano.

 

Cercada de água salgada, a ilha densamente populada é desprovida de aquíferos e, em terra firme, falta superfície suficiente para a coleta e o armazenamento da chuva. Com isso, segundo a Agência Nacional de Água do país asiático, a demanda atual é de 430 milhões de galões por dia — o suficiente para encher 782 piscinas olímpicas. Com uma situação dramática e a estimativa de que, em 2060, a demanda dobre, a ilha tem investido em tecnologia de dessalinização e reciclagem de água potável e não potável. Hoje, o reúso atende 40% das necessidades hídricas de Cingapura. A expetativa é de que, em 40 anos, esse percentual suba para 85%.

Irrigação

 

O processo que permite que a água usada no vaso sanitário esteja pronta para beber ao sair da torneira é de ponta. Em três passos, o líquido passa por microfiltração, osmose reversa e desinfecção ultravioleta, realizados em usinas especialmente desenhadas para isso. A qualidade é rigorosamente monitorada, e os indicadores provam a segurança: há menos de 1cfu (unidade de formação de colônia) da bactéria E. coli por 100ml, como exigem os padrões internacionais.

 

“Investir em pesquisa e desenvolvimento é importante para buscarmos soluções inovadoras que melhorem a eficiência do tratamento da água e mantenham nosso suprimento sustentável. Nos últimos anos, temos identificado diversas tecnologias promissoras”, destaca Harry Seah, executivo de Sistemas Futuros e Tecnologia da Agência Nacional de Água de Cingapura.

 

Reciclar água para beber ainda é incomum. Nos países com tradição de reúso do recurso, as aplicações não potáveis são mais habituais. Em San Francisco, na árida Califórnia, a população enfrenta racionamento desde 2013 e, além das restrições no consumo, o governo local investe na limpeza da água residual para atingir a meta de reduzir a exploração dos recursos hídricos.

Participante de um painel sobre reciclagem no Fórum Mundial de Água, a diretora de recursos hídricos da Comissão de Utilidade Pública do município, Paula Kehoe, conta que, atualmente, San Francisco investe no reúso, principalmente para irrigação de parques e campos de golfe. “Também estamos usando água não potável para limpar as ruas da cidade. Quando construímos nossa nova sede, incorporamos no prédio um sistema de tratamento que permite economizar 65% de água. Muitos desenvolvedores nos procuraram querendo incorporar algo semelhante em seus prédios e em distritos de San Francisco. Então, criamos um programa de água não potável para isso”, diz.

Políticas

O vice-presidente da Associação Internacional de Resíduos Sólidos, Luís Marinheiro, destacou, no painel, que é preciso investir em mais tecnologia de reciclagem da água de forma a tornar a prática comum mundialmente. “Embora 72% da superfície da Terra esteja coberta por água, apenas 3% é própria para consumo e irrigação. A escassez e as secas aumentaram dramaticamente e, provavelmente, se tornarão mais frequentes e mais severas no futuro. É necessário melhorar a tecnologia de reúso”, disse o engenheiro ambiental.

Entre as propostas dos painelistas foi apresentada a ideia de criar uma política de reciclagem da água residual tratada, com metas progressivas a curto, médio e longo prazos. O oficial sênior da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), Marlos de Souza, lembrou que, atualmente, uma pequena proporção de água reciclada é usada na agricultura, o setor que, ao lado da indústria, mais consome o recurso. Porém, ele destacou que o meio urbano tem de estar envolvido também. “A agricultura está pronta para o reúso. Mas as cidades estão? A população precisa estar ciente de que suas casas produzem água e que ela pode ser utilizada.

Em teste, voluntários sentem mesmo sabor

 

Na Califórnia, anos de seca tornaram popular a ideia de beber água reciclada. Na prática, porém, convencer os consumidores a consumir o produto não é tão fácil. “Parece que o termo ‘água residual’ e a ideia da reciclagem em geral evocam reações de nojo”, diz Daniel Harmon, estudante de psicologia da Universidade da Califórnia em Riverside e autor de um estudo sobre o tema, publicado na edição do mês passado da revista científica Appetite. “Temos de tornar a água reciclada menos assustadora para as pessoas que se preocupam com isso, já que ela é uma importante fonte de água agora e no futuro”, observa.

 

Para provar que a rejeição à água de reúso é apenas preconceito, o estudante fez um teste com 143 pessoas que tinham de comparar a água engarrafada tradicional à reciclada. Eles tomaram o líquido sem saber a origem das amostras. Depois, deram notas de um a cinco e avaliaram a textura, a temperatura, o cheiro e a cor do líquido. Os voluntários também receberam um copo com água de torneira.

 

Na avaliação dos resultados, os pesquisadores levaram algumas variáveis em consideração. Uma delas, o DNA. Isso porque existem diferenças genéticas na sensibilidade gustativa, com determinados perfis percebendo o amargor mais intensamente. Além disso, os cientistas consideraram traços de personalidade que ajudaram a determinar a preferência: abertura a novas experiências e neuroticismo (este último caracterizado por ansiedade e insegurança).

Fonte: Diário de Pernambuco

26-03-2018