Marco legal do saneamento básico volta à pauta do Congresso Nacional



Após a frustração da segunda tentativa de desenvolvimento do marco legal do saneamento básico, com a Medida Provisória 868/2018 tendo caducado em 3 de junho, o tema voltou à pauta do Congresso. Dessa vez sob a forma de projeto de lei, o PL 3.261/2019, que dispõe sobre a atualização do arcabouço legislativo do setor, foi apresentado pelo Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que havia sido relator daquela medida provisória.

 

O PL 3.261/2019, submetido a regime de urgência, foi aprovado pelo Plenário do Senado e desde 12 de junho tramita na Câmara dos Deputados, de onde, caso aprovado, seguirá à sanção presidencial.

 

O novo texto replicou parte da última medida provisória, mas com algumas importantes alterações, inclusive nos aspectos mais sensíveis. Assim como a MP 868/2018, o PL 3.261/2019 visa aperfeiçoar a regulação e conferir segurança jurídica às condições de titularidade e delegação dos serviços de saneamento. Permanece também, embora com novos contornos, o estímulo à maior participação privada no setor, de modo a atrair investimentos e resguardar a saúde financeira das companhias de saneamento.

 

No que se refere à participação privada no setor, o PL, de um lado, garantiu a competição com as companhias estatais de saneamento ao vedar a celebração de futuros contratos de programa para delegação de serviços públicos entre os titulares (essencialmente os municípios) e estas companhias – proibindo, portanto, a delegação dos serviços às estatais sem licitação. Por outro lado, na prática, é possível que este cenário de competição só se concretize em distante futuro, já que o PL permitiu a prorrogação dos contratos de programa atuais: em que pese a autorização para uma única prorrogação, ela não recebeu um teto para o novo prazo, o que distancia o novo marco projetado do espírito da MP, a qual previa a prorrogação por no máximo dois anos. Em suma: a competitividade com o setor privado provavelmente não sairá do papel até que se esgotem as prorrogações dos contratos atuais, conforme a vontade dos titulares dos serviços e a negociação com as companhias.

MP 868/2018

 

A MP 868/2018 continha previsão de que anteriormente à contratação com dispensa de licitação, seria dada a oportunidade à iniciativa privada, através de chamamento público, para que apresentasse proposta de manifestação de interesse mais eficiente e vantajosa para a prestação descentralizada dos serviços públicos de saneamento. Caso não acudissem interessados, o titular dos serviços poderia prosseguir com a contratação da companhia estatal sem licitação, ao passo que, se fossem apresentadas propostas mais vantajosas, seria instaurado procedimento licitatório para proceder à contratação do novo prestador. Nesta última hipótese, as estatais participariam da licitação em iguais condições jurídicas às dos demais interessados.

 

Embora o PL não tenha refletido em seu texto o chamamento público prévio à pretensão de contratação da companhia estatal por dispensa de licitação, outra providência de cunho legislativo foi tomada. O PL alterou a lei dos consórcios públicos expressamente vedando de maneira genérica (e, portanto, abrangente de todos os setores) a prestação de contrato de programa para a delegação de serviços públicos.

 

Caso o PL seja aprovado, não haverá que ser falar em celebração de contrato de programa entre os municípios (ou titulares em prestação regionalizada) e as companhias estaduais para delegar a essas últimas as atividades de saneamento que tenham natureza de serviço público – vale ressaltar que parte relevante das atividades atinentes a água e esgoto, resíduos sólidos e águas pluviais são definidas no direito brasileiro como sendo serviços públicos. Nesse caso, para assumir a gestão dos serviços, as companhias terão que assinar contratos de concessão regidos precipuamente pelas Leis 8.987/1995 ou 11.079/2004, afastando-se o regime da lei de consórcios públicos. A consequência mais imediata é a impossibilidade futura de contratação sem licitação e a submissão da companhia estatal invariavelmente à concorrência sem possibilidade de prévia negociação entre os titulares e as companhias.

 

Exceção é feita pela lei apenas nas hipóteses de a licitação para a delegação dos serviços ter sido deserta ou não haverem interessados em eventual processo de privatização da companhia estadual. Esses dois casos admitem, na versão do PL, a contratação da estatal sem licitação, sendo que este permanece, no entanto, com a natureza de concessão e não mais contrato de programa.

Companhias estatais

 

Em relação às companhias estatais de saneamento básico, vale mencionar também que o PL previu que situações de fato de prestação de serviços por essas entidades sem contrato com o titular dos serviços, existentes até a data de publicação da lei, poderão ser reconhecidas como contratos de programa e formalizadas, mediante acordo entre as partes, em até cinco anos. Este ponto também prejudica o avanço no sentido de uma maior competitividade no setor.

 

A regionalização da prestação dos serviços com vistas ao ganho de escala e à viabilidade técnica e econômico-financeira deles permaneceu como uma diretriz importante nesse novo projeto. Com efeito, a titularidade continua sendo apartada entre, de um lado, municípios e Distrito Federal (no caso de interesse local), e, de outro lado, a estrutura de governança interfederativa ou dos entes organizados por gestão associada, mediante consórcios públicos ou convênios de cooperação (no caso de interesse comum). Dando mais solidez a esta organização institucional – e superando um terreno de intensas discussões históricas – foram introduzidas definições de serviço de saneamento de interesse local, como sendo aquele cujas infraestruturas e instalações operacionais atendem a um único município, e de serviço de saneamento de interesse comum, como sendo, por sua vez, aquele residual, ou seja, não caracterizado como de interesse local.

 

Os Estados ficaram encarregados de dispor em lei blocos de municípios para a prestação regionalizada. A par das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões – que são blocos compulsórios para os seus participantes e em que a titularidade é única e exercida pela respectiva estrutura de governança interfederativa – nos blocos de formação voluntária (convênio de cooperação ou consórcio), a prestação regionalizada dependerá da adesão de cada um dos titulares do serviço. Outra novidade do PL é que a União poderá estabelecer, de forma subsidiária aos Estados, blocos de referência para a prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico.

 

Essas regras sobre os blocos já constavam da última versão da lei de conversão da MP 868/2018, na tentativa de mitigar as resistências das companhias estaduais e de alguns governadores quanto ao risco de seleção adversa: dado que o subsídio cruzado é largamente aplicado no setor de saneamento, em que municípios superavitários financiam indiretamente municípios deficitários, supostamente os operadores privados concentrariam seus interesses apenas nos primeiros, deixando para as empresas estatais os segundos, extinguindo o pool finance praticado. Melhor teria sido que os esforços do legislador encontrassem instrumentos de equacionamento dos subsídios cruzados via propostas de realismo tarifário ou mesmo de contribuições de melhoria (tributação direta), a fim de evitar os mecanismos “sujos” de formação de preços que prejudicam nossas infraestruturas reguladas.

 

Foi reforçada a cooperação entre os entes, de modo que, mesmo quando no exercício de titularidade pelo município nos casos de interesse local, este poderá receber cooperação técnica do respectivo Estado para as atividades de planejamento, regulação e prestação, além de basear-se em estudos fornecidos pelos prestadores. Já o eventual apoio técnico e financeiro pela União aos titulares dos serviços para adaptação dos serviços de saneamento básico às disposições do novo marco regulatório, a ser minudenciado em futuro decreto, ficou desde logo condicionado ao cumprimento, pelos titulares, do seguinte: (i) definição dos blocos de prestação dos serviços; (ii) estruturação da forma de exercício da titularidade em cada bloco; (iii) elaboração ou atualização dos planos regionais de saneamento básico; (iv) modelagem da prestação dos serviços em cada bloco, com base em estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA); (v) alteração dos contratos de programa e de concessão vigentes, com vistas à transição para o novo modelo de prestação; e (vi) licitação da concessão para exploração dos serviços ou da alienação de controle acionário da companhia estatal prestadora dos serviços, com a substituição dos contratos de programa e de concessão vigentes pelos novos contratos de concessão.

Projeto de Lei

 

O PL introduziu mudanças profundas na regulação dos serviços. De um lado, o PL, em sua versão aprovada no Senado, após passar por emendas, não contém mais as regras que atribuíam, na forma da MP 868/2018, à Agência Nacional de Águas (ANA) a função de estabelecer normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico.

 

Essas emendas têm potencialmente uma razão saudável: na medida em que a competência legislativa para organização da administração pública federal tem sua iniciativa obrigatoriamente exercida pelo Presidente da República, não caberia a um projeto de lei iniciado no Congresso Nacional dispor sobre a matéria. Espera-se, assim, que um novo projeto de lei, específico para a ANA, seja apresentado pela presidência, o qual poderá ser aglutinado ou mesmo votado paralelamente ao PL 3.261/2019, restaurando, assim, a racionalidade do marco regulatório idealizado pela MP 868/2018. Essa seria a única maneira de não se perderem uniformidade regulatória e segurança jurídica, valores tão caros aos investidores e financiadores, interessados em mitigar custos de transação que não raramente inviabilizam os empreendimentos do setor. Assim, o objetivo da antiga medida provisória de combater o casuísmo regulatório que contamina o setor de saneamento ainda poderá ser oportunamente refletido.

 

No caso de alienação das companhias estaduais, os contratos de programa que elas tenham firmado com os municípios, diferentemente da previsão da MP 868/2018, podem permanecer submissos à atual regra da lei de consórcios públicos, pela qual tais contratos são automaticamente extintos quando ocorre a privatização das contratadas. Nesse sentido, o PL apenas se limita a dizer que, em caso de alienação de controle acionário de companhia estatal prestadora de serviços de saneamento básico, os contratos de programa ou de concessão em execução, mesmo quando ausentes os instrumentos que os formalizem, poderão ser substituídos por novos contratos de concessão para prestação regionalizada, mediante anuência dos titulares dos serviços.

 

Tal como estava previsto na MP 868/2018, a privatização das companhias estaduais que atualmente executam os serviços deve ser comunicada aos titulares que a elas deleguem os serviços com proposta do Estado controlador a respeito da permanência ou extinção dos contratos vigentes. Dessa vez foi fixado um prazo de cento e oitenta dias para a resposta do titular dos serviços à proposta de manutenção ou extinção dos contratos, sendo que o silêncio, nesse período, representará a aceitação tácita. Além disso, ficou determinado que a decisão do titular será proferida pela Câmara Municipal, em caso de serviço de interesse local, e pela estrutura de governança interfederativa, em caso de serviço de interesse comum. A definição do poder legislativo como responsável pela decisão da permanência ou não dos contratos não se justifica e imporá riscos consideráveis aos processos de desestatização, os quais são de prerrogativa do poder executivo.

 

Pelo PL, a comunicação ao titular, nesses casos, prescindirá da apresentação de estudos de viabilidade e de minuta do edital de licitação e anexos, que prevejam obrigações, escopo, prazos e metas de atendimento para a prestação dos serviços de saneamento, a serem observados pela companhia após a alienação do seu controle acionário, tal como exigia a MP 868/2018.

 

A previsão de possibilidade de subdelegação, condicionada à sua comprovação técnica por parte do prestador de serviços e à prévia licitação, passou a alcançar não mais apenas os contratos programa, sendo que há no PL clara indicação de que outras concessionárias privadas também poderão subdelegar os serviços. Dessa vez ficou expressa que a subdelegação está limitada a 25% do valor dos contratos. Além disso, alternativamente à permissão do poder concedente, exigida na forma da MP 868/2018, a subdelegação poderá ocorrer sem anuência, desde que haja previsão expressa no contrato inicial.

Aperfeiçoamento dos contratos

 

Iniciativa salutar foi a de estabelecer a possibilidade e incentivar a adoção de procedimentos simplificados de licenciamento de unidades de tratamento de esgotos sanitários, de efluentes gerados nos processos de tratamento de água e das instalações integrantes dos serviços públicos de manejo de resíduos sólidos. Aqui são ponderados os valores de preservação ambiental e da eficiência que o setor reclama em busca de universalização. Propostas similares constaram da MP 844/2018 que antecedeu em quase seis meses a MP 868/2018 e na qual essa última buscou praticamente todas as suas regras.

 

Além disso, de acordo com o PL, a autoridade ambiental competente estabelecerá metas progressivas para a substituição do sistema unitário – formado por conjunto de condutos, instalações e equipamentos destinados a coletar, transportar, condicionar e encaminhar exclusivamente esgoto sanitário – pelo sistema separador absoluto, em que essa mesma infraestrutura se preste a acomodar os mesmos serviços abrangendo conjuntamente o esgoto sanitário e águas pluviais.

 

Na contramão do avanço em termos de licenciamento, foi prorrogado novamente o prazo para a adaptação dos entes à lei nacional de resíduos sólidos, ficando postergada a obrigação de disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. Revela-se mais uma vez tolerância com a incapacidade dos municípios de observar as políticas públicas federais sobretudo no setor de saneamento básico.

 

O PL induz a um aperfeiçoamento dos contratos, ao prever a obrigação de regras fundamentais muitas vezes não inseridas nos instrumentos contratuais. Além da exigência já contida na MP 868/2018 de constar nos contratos metas de expansão dos serviços, de redução de perdas na distribuição de água tratada, de qualidade, eficiência e de uso racional da água, da energia e de outros recursos, segundo o PL, os contratos de delegação dos serviços de saneamento deverão conter ainda o seguinte: (i) metas de reuso de efluentes sanitários e do aproveitamento de águas de chuva em conformidade com os serviços a serem prestados; (ii) possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias, bem como as provenientes de projetos associados; (iii) metodologia de cálculo de eventual indenização relativa aos bens reversíveis não amortizados quando houver a extinção do contrato; e (iv) repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária.

 

Em meio a avanços e retrocessos, o novo projeto tenta novamente emplacar condições necessárias para o desenvolvimento do setor de saneamento básico no Brasil. Será importante observar as emendas que o PL receberá na Câmara dos Deputados e, sobretudo, se os detratores do novo marco regulatório voltarão a lançar as garras do corporativismo contra a indispensável participação privada no setor, como fonte importante de capitais e de novos parâmetros operacionais e de eficiência que aproximem o horizonte da universalização e, assim, de um padrão de qualidade de vida e sanitário básicos.

 

Rafael Vanzella: Sócio da área de Infraestrutura do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

 

Jéssica Suruagy A. Borges: Advogada da área de Infraestrutura do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados. Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

01-07-2019